Malevich e o Absoluto

Branco sobre Branco (Kazimir Malevich, 1916)

Do ponto de vista dos suprematistas, as aparências exteriores da natureza não apresentam nenhum interesse: essencial é a sensibilidade em si mesma, independentemente do meio em que teve origem”.

A satisfação que experimentava com a liberação do objeto levou-me cada vez mais longe no deserto, até aquele ponto onde nenhuma coisa de autêntico subsiste a não ser a sensibilidade – e é assim que a sensibilidade se torna a substância mesma da vida”.

“O suprematismo era, para Malevich, a supremacia da sensibilidade na arte. No seu entender, todas as formas da arte figurativa eram métodos dialéticos para exprimir a experiência sensível do real mas, por serem dialéticos, esses métodos jamais poderiam determinar o valor real da obra de arte. Embora reconhecendo que a representação dos objetos não invalida a arte que a utiliza, Malevich acreditava que, através dos tempos, a verdadeira arte – a sensibilidade pura – desaparecera detrás do amontoamento dos objetos. O suprematismo seria, portanto, uma ruptura radical com esses métodos e uma redescoberta da arte pura, isto é, da supremacia da sensibilidade.”

“O suprematismo, assim, pretende alcançar ‘a expressão pura, sem representação’. Noutras palavras, chega ao deserto. Mas esse deserto – que é o mundo sem objetos – não está vazio. Ele está, por assim dizer, cheio da ausência dos objetos”.

“Malevich diz que o essencial é a sensibilidade em si mesma, independente do meio em que teve origem: representar o objeto pelo fato de ter sido ele a causa de uma determinada experiência sensível é representar um reflexo da sensibilidade e não a sensibilidade mesma. Quer dizer, para Malevich, a percepção verdadeira passa-se numa dimensão aonde não chegam nem as ideias, nem as noções, nem as imagens. Essa experiência sensível pura aflora na consciência já comrpometida com a estrutura representativa da vida e da arte. Todo o esforço do artista suprematista seria para captar a experiência da sensibilidade antes que ela ganhe a forma convencional das representações objetivas. A rigor, a estética suprematista conduz a um impasse. De fato, essa sensibilidade pura, anterior a toda e qualquer representação, é por definição mesma informulável.”

“Faminto de absoluto, Malevich despoja sua pintura de todas as contaminações com o mundo natural e reduz seu vocabulário a algumas figuras geométricas simples: o retângulo, o círculo, o triângulo e a cruz. Esse despojamento – ao contrário, por exemplo, do de Mondrian – é súbito, como se Malevich pretendesse de um salto alcançar o cimo ideal da abstração. Mais tarde, reintroduziria a cor nos quadros e realizaria composições menos simples, às vezes mesmo com certo sentido sinfônico. Mas tudo isso era como que a preparação para novos acometimentos àquele núcleo puro do sensível. Nesse sentido, uma de suas obras mais audaciosas – e talvez mais próximas da sensibilidade pura – é o famoso Branco sobre branco”.

“Nesse quadro, em que uma forma quadrada quase desaparece num fundo também branco mas de luminosidade diferente, é a própria linguage do pintor que, na ânsia de formular o informulável, ameaça desaparecer no silêncio. Ao escolher aquelas formas geométricas simples para substituir a representação dos objetos, Malevich não pretende fazer pintura geométrica, não pretende muito menos disputar aos geômetras a intuição de novas relações espaciais objetivas. Essas formas seriam como que os arquétipos do mundo natural, os elementos que restariam de uma redução radical de sua aparência. Não se trata, porém, das formas ideais platônicas mas, antes, de signos intuitivos que, livres de qualquer alusão à natureza, tornam-se uma nova estrutura simbólica da realidade. Formas puras, que se dão à percepção com um mínimo de conotações, estão mais próximas daquela ‘experiência sensível sem imagens nem noções’, coincidem com elas e são, ao mesmo tempo, a experiência e o veículo da experiência. É certo que essas formas, para aludirem à ausência do objeto, transformam-se inevitavelmente no objeto dessa ausência. Para realizar o seu ideal na íntegra, Malevich teria de chegar à ausência do objeto da ausência. O quadro Branco sobre branco é talvez uma tentativa limítrofe nessa direção. Mais adiante é o silêncio absoluto, ausência total das contradições, mas, também, ausência total do mundo.”

GULLAR, Ferreira. Etapas da Arte Contemporânea.

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