Enigmas e Transparências em Raymond Roussel, por Robbe-Grillet

Piazza d'Italia (Giorgio de Chirico, 1913)

Piazza d’Italia (Giorgio de Chirico, 1913)

“Raymond Roussel descreve; e além daquilo que descreve não há nada, nada daquilo que tradicionalmente pode ser chamado de uma mensagem. Para empregar uma das expressões favoritas da crítica literária acadêmica, Roussel não parece “ter alguma coisa a dizer”. Nenhuma transcendência, nenhuma superação humanista pode ser aplicada às séries de objetos, de gestos e de acontecimentos que constituem, desde logo, seu universo.

Acontece que, para atender às necessidades de uma linha descritiva muito estrita, ele tem de nos contar alguma anedota psicológica, ou então algum costume religioso imaginário, uma narrativa de usos primitivos, uma alegoria metafísica… Mas esses elementos não têm nunca nenhum ‘conteúdo’, nenhuma profundidade, em caso algum podem constituir o mais modesto apoio ao estudo dos caracteres humanos ou das paixões, a menor contribuição à sociologia, a menor meditação filosófica. Com efeito, trata-se sempre de sentimentos abertamente convencionais (amor filial, devotamento, grandeza de espírito, traição, e sempre tratado da maneira mais banal), ou então de ritos ‘gratuitos’, ou de simbolismos reconhecidos e de filosofias usadas. Entre o não-senso absoluto e o sentido esgotado só restam, ainda uma vez, as próprias coisas, objetos, gestos, etc.

Tampouco no campo da linguagem Roussel corresponde melhor às exigências da crítica. Muitos já ressaltaram esse fato, naturalmente para se queixarem dele: Raymond Roussel escreve mal. Seu estilo é morno e neutro. Quando sai da ordem da constatação – isto é, da chateza confessada: o domínio do ‘há’ e do ‘está colocado a uma certa distância’ – é sempre para cair na imagem banal, na metáfora mais batida, oriunda esta também de algum arsenal de convenções literárias. Enfim, a organização sonora das frases, o ritmo das palavras, sua música não parece apresentar nenhum problema de audição para o seu autor. O resultado é quase continuamente sem interesse do ponto de vista das belas letras: uma prosa que passa de uma monotonia monocórdia para engenhosos emaranhados cacofônicos, para versos que devem ser contados nos dedos para se perceber que os alexandrinos têm de fato doze pés.

Eis-no portanto na presença do avesso perfeito daquilo que se convencionou chamar de um bom escritor: Raymond Roussel não tem nada a dizer e o diz mal… E no entanto sua obra começa a ser reconhecida por todos como uma das mais importantes da literatura francesa do começo deste século, uma daquelas que exerceram seu fascínio sobre várias gerações de escritores e de artistas, uma daquelas, sem dúvida alguma, que devem ser consideradas entre os ancestrais diretos do romance moderno, donde o interesse cada vez maior que hoje se verifica por essa obra opaca e decepcionante.

Examinemos inicialmente a opacidade. É, ao mesmo tempo, uma excessiva transparência. Como não há nunca nada além da coisa descrita, isto é, como nenhuma sobre-natureza se esconde atrás dela, nenhum simbolismo (ou então é um simbolismo que é logo proclamado, explicado, destruído), o olhar logo se vê obrigado a parar na própria superfície das coisas: uma máquina de funcionamento engenhoso e inútil, um cartão postal de uma estacão balneária, uma festa de desenrolar mecânico, uma demonstração de feitiçaria infantil, etc. Uma transparência total, que não deixa subsistir nem sombras, nem reflexos, vem a dar de fato numa pintura trompe-l’oeil. Quanto mais se acumulam os dados precisos, a minúcia, os detalhes de forma e de dimensão, mais o objeto perde em profundidade. Portanto, trata-se aqui de uma opacidade sem mistérios: tal como atrás de uma tela de fundo, não há nada atrás dessas superfícies, não existe interior, nenhum segredo, nada de segundas intenções.

Entretanto, por um movimento de contradição frequente nos estilos modernos, o mistério é um dos temas formais mais prazeirosamente utilizados por Roussel: procura de um tesouro oculto, origem problemática deste ou daquele personagem, ou de tal objeto, enigmas de toda espécie apresentados a todo instante tanto ao leitor quanto ao herói sob a forma de adivinhações, de charadas, de colagens aparentemente absurdas, alusões, caixas de fundo falso, etc. Saídas muradas, subterrâneos que comunicam dois lugares sem relação visível, revelações repentinas sobre as origens de uma filiação contestada balizam esse mundo racionalista à imagem dos romances policiais da melhor tradição, transformando por um instante o espaço geométrico das situações e das dimensões num novo Castelo dos Pirineus… Mas não, o mistério é aqui controlado incessantemente e muito bem. Não apenas esses enigmas são expostos com muita clareza, analisados bastante objetivamente, e se afirmam muito como enigmas, como ainda, ao fim de um discurso mais ou menos longo, a solução para eles será descoberta e demonstrada, e também desta vez com a maior simplicidade, considerando-se a extrema complicação dos diversos fios. Após ter lido a descrição da máquina desnorteante, temos direito à descrição rigorosa de seu funcionamento. Depois das charadas sempre vem a explicação, e tudo volta à ordem.

É neste ponto que a explicação por sua vez se torna inútil. Ela responde tão bem às perguntas feitas, esgota tão completamente o assunto que, no fim das contas, parece fazer duplo emprego com a própria máquina. E, mesmo quando a vemos funcionar e sabemos qual a sua finalidade, a máquina continua algo abracadabrante: tal como a famosa bate-estacas que serve para compor mosaicos decorativos com dentes humanos utilizando a energia do sol e dos ventos! A decomposição do conjunto em suas menores engrenagens, a perfeita identidade entre estas e a função que desempenham não fazem mais do que nos levar ao espetáculo puro de um gesto sem sentido. Uma vez mais o significado transparente demais se junta à total opacidade.

Mais além, começa-se por propor uma colagem de palavras tão heteróclita quanto possível – colocada por exemplo sob uma estátua, esta mesma carregada de múltiplas particularidades desconcertantes e dadas como tais) – e logo nos é explicado longamente o significado (sempre imediato, ao nível das palavras) da frase-adivinhação, e como ela se liga diretamente à estátua, cujos detalhes estranhos revelam-se então como sendo absolutamente necessários, etc. Ora, essas elucidações em cadeia, extraordinariamente complexas, engenhosas e “puxadas pelos cabelos” parecem tão irrisórias, tão decepcionantes, que é como se o mistério permanecesse intato. Mas doravante já é um mistério lavado, esvaziado, que se tornou inominável. A opacidade não oculta mais nada. Tem-se a impressão de ter encontrado uma gaveta fechada, depois uma chave; e esta chave abre a gaveta de maneira impecável… e a gaveta está vazia.

O próprio Roussel parece ter-se enganado um pouco a respeito desse aspecto de sua obra, ele que pensava poder fazer com que as multidões corressem ao Châtelet para assistir a uma torrente desses – acreditava ele – palpitantes enigmas e à sucessiva resolução por um herói paciente e sutil. A experiência, infelizmente, logo o desenganou. Era fácil prever isso. Pois na realidade trata-se de adivinhações feitas no vazio, de pesquisas concretas mas teóricas, privadas de acidentes e que por essa razão não podem ’emboscar’ ninguém. Entretanto, em cada página há uma armadilha, mas faz-se apenas com que elas caminhem à nossa frente, mostrando-nos todas as saídas e dizendo-nos, pelo contrário, como não cair vítima delas. Aliás, ainda que não tenha um longo hábito das operações rousselianas e da necessária decepção que se segue à sua realização, qualquer leitor ficará desde logo chocado com a total ausência de interesse anedótico – a total gratuidade – dos mistérios propostos. Ainda aqui se trata ou do vazio dramático completo, ou do drama de panóplia com todos seus acessórios convencionais. E, neste caso, quer as histórias contidas ultrapassem ou não todos os limites da estupefação, a única maneira pela qual são apresentadas, a ingenuidade com que são feitas as perguntas (no gênero: ‘Todos os espectadores estavam muito intrigados pela…’, etc.), o estilo enfim, tão distante quanto possível das regras elementares do bom suspense, bastariam para destacar o leitor mais bem disposto desses inventores amadores de ficção-científica e dessas páginas folclóricas arrumadas como um desfile de marionetes.

Quais são então essas formas que nos apaixonam? E como agem sobre nós? Qual seu significado? Sem dúvida é ainda muito cedo para responder às duas ultimas questões. As formas rousselianas ainda não se tornaram acadêmicas; ainda não foram digeridas pela cultura; ainda não passaram para o estado de valores. Entretanto, já nos é possível pelo menos tentar indicar algumas dessas formas. E para começar, entre elas exatamente essa investigação que destrói, através do estilo, seu próprio objeto.

Esta investigação, como dissemos, é puramente formal. E antes de tudo um itinerário, um caminho lógico que leva de um determinado estado a um outro – que se assemelha muito ao primeiro, ainda que seja atingido depois de um longo desvio. Podemos ter um novo exemplo dele – e que tem ainda a vantagem suplementar de se situar inteiramente no setor da linguagem nos breves textos póstumos cujo arcabouço o próprio Roussel explicou: duas frases que sao pronunciadas da mesma maneira, com apenas uma diferença mínima, mas cujos sentidos não têm relação alguma, por causa das diferentes acepções nas quais são empregadas as palavras semelhantes. O trajeto é aqui a história, a anedota que permite reunir as duas frases que constituirão, uma, as primeiras palavras do texto, e a outra, as últimas. Os episódios mais absurdos serão assim justificados por sua função de utensílios, de veículos, de intermediários; a anedota, abertamente, não tem mais conteúdo, mas sim um movimento, uma ordem, uma composição; ela também não é mais do que uma mecânica: simultaneamente máquina de reproduzir e máquina de modificar.

Pois é preciso insistir na importância que Roussel atribui a esta modificação de som muito tênue que separa as duas frases-chave, sem se falar na modificação geral do sentido. Debaixo de nossos olhos, a narrativa realizou, de um lado, uma profunda mudança naquilo que o mundo – e a linguagem – significa, e por outro lado, uma ínfima defasagem superficial (a letra alterada); o texto ‘morde o próprio rabo’, porém com uma pequena irregularidade, uma pequena entorse… que muda tudo.

Frequentemente também encontramos a simples reprodução plástica, como esse mosaico que a já citada bate-estacas desenha. Os exemplos dessas imagens de toda espécie são abundantes: estátuas, gravuras, quadros ou mesmo grosseiros desenhos sem nenhum caráter artístico. O mais conhecido desses objetos é a vista em miniatura que se pode ver no cabo de uma caneta. Bem entendido, a precisão dos detalhes é aí tão extremada como se o autor nos mostrasse uma cena verdadeira, tamanho natural ou mesmo aumentada com a ajuda de um aparelho óptico, binóculo ou microscópio. Uma imagem de alguns milímetros de extensão faz com que vejamos assim uma praia que comporta diversos personagens na areia ou na água, em barcos; não há nunca nada de impreciso em seus gestos, ou nas linhas do cenário. Do outro lado da baía passa uma estrada; e nessa estrada corre um automóvel e um homem está sentado nesse automóvel; esse homem segura uma bengala, cujo punho representa… etc.

A visão, sentido privilegiado em Roussel, rapidamente atinge uma acuidade obsessiva, que tende para o infinito. Essa característica se torna ainda mais provocante pelo fato de que se trata de uma reprodução. Roussel prefere descrever, como ressaltamos um universo que não é apresentado como real, mas sim como já representado. Gosta de pôr um artista intermediário entre ele mesmo e o mundo dos homens. O texto que nos é proposto é uma relação que diz respeito a uma duplicidade. O desmedido crescimento de certos elementos distantes ou minúsculos assume aí um valor particular; pois o observador não pôde se aproximar para olhar mais perto o detalhe que atrai sua atenção. Evidentemente, ele também inventa, à semelhança desses inúmeros criadores de máquinas ou de métodos – que povoam toda a obra. A visão é aqui uma visão imaginária.

Uma outra característica surpreendente dessas imagens é aquilo que poderíamos chamar de sua instantaneidade. A onda que está prestes a estourar, a criança que roda o arco na praia, mais além a estátua de um personagem no ato de realizar um gesto eloquente (ainda que inicialmente o sentido desse gesto esteja ausente, um enigma), ou o objeto representado a meio caminho entre o solo e a mão que acaba de soltá-lo, tudo nos é dado como que em pleno movimento, porém imobilizado no meio desse movimento, imobilizado pela representação que deixa em suspenso todos os gestos, quedas, conclusões etc., eternizando-os na iminência de seu fim e privando-os de seu sentido.

Enigmas vazios, tempos parados, signos que se recusam a significar, gigantesco crescimento do detalhe minúsculo, textos que se fecham sobre si mesmos, estamos num universo chato e descontínuo em que cada objeto só nos remete a ele mesmo. Universo da imobilidade, da repetição, da evidência absoluta, que encanta e desencoraja o explorador…

E eis que de novo a armadilha reaparece, porém de uma outra natureza. A evidência, a transparência exclui a existência de redomas de cristal; entretanto descobrimos que não podemos mais sair deste mundo aqui. Tudo está parado, tudo está se reproduzindo, e a criança segura para sempre seu bastão levantado acima do arco que se inclina, e a espuma da onda imóvel vai tornar a cair …”

ROBBE-GRILLET, Alain. Por Um Novo Romance.

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