Introdução à Teoria dos Mitos de Frye

Cacciata dei progenitori dall'Eden (Masaccio, 1425)

Cacciata dei progenitori dall’Eden (Masaccio, 1425)

“Um pintor original sabe, por certo, que quando o público pede parecença com um objeto quer em geral justamente o oposto, a parecença com as convenções pictóricas com que se familiarizou. Por isso, quando rompe com essas convenções, inclina-se frequentemente a afirmar que nada mais é do que um olho, que pinta simplesmente o que vê, como o vê, e assim por diante. Seu motivo para dizer tal contra-senso é bastante claro: quer ele dizer que a pintura não é meramente hábil decoração, e envolve uma difícil conquista de alguns problemas espaciais indubitáveis. Mas isso pode ser francamente admitido sem se concordar em que a causa formal de uma pintura esteja fora da pintura, afirmativa essa que destruiria toda a arte se fosse tomada seriamente. O que ele realmente fez foi obedecer a um impulso obscuro, mas profundo, de revoltar-se contra as convenções estabelecidas em seus próprios dias, para redescobrir a convenção num plano mais profundo. Rompendo com a escola de Barbizon, Manet descobriu uma afinidade mais profunda com Goya e Velázquez; rompendo com os impressionistas, Cézanne descobriu uma afinidade mais profunda com Chardin e Masaccio. Ter originalidade não pode tornar um artista não convencional; arrasta-o mais longe na convenção, em obediência à lei da própria arte, que procura constantemente reformular-se a partir de suas próprias profundidades e opera por meio de seus gênios em prol da metamorfose, assim como opera por meio dos talentos menores em prol da mudança.”

“A música fornece animador contraste com a pintura em sua teoria crítica. Quando a perspectiva foi descoberta na pintura, a música bem poderia ter caminhado em direção semelhante, mas na verdade o desenvolvimento da música representativa ou de ‘programa’ foi severamente ilimitado. Os ouvintes podem ainda achar prazer em ouvir os rumores externos habilmente imitados na música, mas ninguém assevera que um compositor está sendo decadente ou charlatão se não faz tais imitações. Nem se acredita que essas imitações precedam em importância as formas da própria música, ainda menos que constituam essas formas. O resultado é que os princípios estruturais da música são claramente entendidos, e podem ser ensinados mesmo às crianças.”

“Os princípios estruturais da pintura são frequentemente descritos de acordo com seus análogos na Geometria plana (ou sólida, segundo um progresso maior da analogia). Uma famosa carta de Cézanne fala da aproximação da forma pictórica à esfera e ao cubo, e a prática dos pintores abstracionistas parece confirmar seu modo de ver. As formas geométricas são apenas análogas ás formas pictóricas, de modo algum idênticas a elas; os verdadeiros princípios estruturais da pintura devem ser buscados, não nalguma analogia externa com qualquer outra coisa, mas na analogia interna da própria arte. Os princípios estrututrais da literatura, semelhantemente, devem derivar da crítica arquetípica e anagógica, as únicas espécies que supõem um contexto mais amplo da literatura como um todo.”

“Mas vimos no primeiro ensaio que, como os modos da ficção se movem do mítico para o imitativo baixo e para o irônico, aproximam-se de um ponto de extremo ‘realismo’ ou semelhança de representação com a vida. Segue-se que o modo mitológico, as histórias sobre deuses, nas quais as personagens têm a maior força de ação possível, é o mais abstrato e convencionalizado de todos os modos literários, tal como os modos correspondentes nas outras artes – a pintura religiosa bizantina, por exemplo – mostram o mais alto grau de estilização em sua estrutura. Por isso os princípios estruturais da literatura relacionam-se tão estreitamente com a mitologia e a religião comparativa como os da pintura com a Geometria.”

“Começamos nosso estudo dos arquétipos, portanto, com um mundo mítico, um mundo abstrato ou puramente literário de delineamento ficcional ou temático, não afetado pelos cânones da adaptação plausível à experiência comum. Em termos de narração, o mito é a imitação das ações que raiam pelos limites concebíveis do desejo, ou que se situam nesses limites. Os deuses fruem belas mulheres, lutam uns com os outros com força prodigiosa, confrontam e amparam o homem ou então lhe observam as misérias do alto de seu privilégio imortal. O fato de o mito operar no plano mais alto do desejo humano não significa que apresente necessariamente seu mundo como atingido ou atingível por seres humanos. Em termos de sentido ou diánoia, o mito é o próprio mundo, visto como área ou campo de atividade, tendo-se em mente o nosso princípio de que o sentido ou configuração da poesia é uma estrutura de imagens com implicações conceptuais. O mundo das imagens míticas é habitualmente representado pelo conceito de céu ou Paraíso na religião, e é apocalíptico, no sentido já explicado dessa palavra, um mundo de metáfora total, em que tudo é potencialmente idêntico a tudo o mais, como se tudo estivesse dentro de um só contexto infinito.”

“No mito vemos isolados os princípios estruturais da literatura; no realismo vemos os mesmos princípios estruturais (não princípios semelhantes) ajustando-se a um contexto de plausibilidade. (Semelhantemente, na música, uma composição de Purcell e uma composição de Benjamin Britten podem não ser de maneira alguma semelhantes entre si, mas, se são em ré maior, sua tonalidade será a mesma.) A presença de uma estrutura mítica na ficção realística, todavia, apresenta certos problemas técnicos para que se torne possível, e os artifícios usados para resolver esses problemas podem receber o nome geral de deslocação.”

FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica.

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