Sobre algumas noções obsoletas: a forma e o conteúdo, por Alain-Robbe Grillet

Amorpha, Fugue en Deux Couleurs (František Kupka, 1912)

Amorpha, Fugue en Deux Couleurs (František Kupka, 1912)

No. 14 (Mark Rothko, 1960)

No. 14 (Mark Rothko, 1960)

“Uma coisa deveria incomodar os adeptos do realismo socialista: é a perfeita semelhança de seus argumentos, de seu vocabulário, de seus valores, com os dos críticos burgueses mais encarniçados. Por exemplo, quando se trata de separar a ‘forma’ de um romance de seu ‘conteúdo’, isto é, quando se tratar de opor o estilo (escolha das palavras e sua disposição, emprego dos tempos gramaticais e das pessoas, estrutura da narrativa, etc.) à anedota que ele serve para contar (acontecimentos, ações das personagens, motivações destas, a moral que daí se extrai).

A única coisa que difere entre a literatura acadêmica do Ocidente e a dos países do Leste é a doutrina. E mesmo assim não difere tanto quanto uns e outros pretendem. Em todo caso, a história que é contada (segundo sua ótica comum) continua a ser a coisa mais importante entre todas as outras; o bom romancista continua a ser aquele que inventa lindas histórias o que as conta melhor; o ‘grande’ romance enfim, tanto aqui como lá, é apenas aquele cuja significação supera a anedota, que a transcende na direção de uma verdade humana profunda, de uma moral ou de uma metafísica.

A partir daí é normal que a acusação de ‘formalismo’ seja uma das mais graves na boca de nossos censores de ambos os lados. Ainda desta vez, apesar do que dizem, aquilo que essa palavra revela é uma decisão sistemática sobre o romance; e, ainda desta vez, debaixo de seu aspecto natural, o sistema esconde as piores abstrações – para não dizer os piores absurdos. Além do mais, pode-se descobrir aí um certo desprezo pela literatura, implícito porém flagrante, que surpreende tanto ao provir de seus defensores oficiais – os conservadores da arte e da tradição – quanto daqueles que fizeram da cultura de massa seu cavalo de batalha preferido.

Que entendem ao certo por formalismo? A coisa está bem clara: seria uma preocupação muito acentuada pela forma – e, neste caso, pela técnica do romance – às custas da história e de seu significado. Será que esse velho barco furado – a oposição escolar entre a forma e o fundo – ainda não naufragou?

Seria possível dizer, na verdade, que acontece exatamente o contrário, e que esta ideia formada grassa com uma virulência maior do que nunca. Se encontramos essa censura de formalismo sob a pena dos piores inimigos aqui reconciliados (amadores das belas-artes e servidores de Jdanov); isto não é evidentemente o resultado de um encontro fortuito; eles estão de acordo pelo menos num ponto essencial: recusar à arte sua principal condição de existência, a liberdade. Uns só querem ver na literatura um instrumento a mais a serviço da revolução socialista, outros pedem-lhe que, acima de tudo, exprima esse vago humanismo que fez a alegria de uma sociedade agora em declínio, e da qual são os últimos defensores.

Nos dois casos, trata-se de reduzir o romance uma significação que lhe é exterior, trata-se de fazer dele um meio para atingir um certo valor que o supera, um além, espiritual ou terrestre, a Felicidade futura ou a eterna Verdade. Enquanto que, na verdade, se a arte é alguma coisa, ela é tudo, que por conseguinte ela se basta a si mesma, e que não existe nada além dela.

É bem conhecida a charge russa na qual um hipopótamo, no mato, mostra uma zebra a um outro hipopótamo: ‘Você está vendo, diz ele, isso é que é formalismo’. A existência de uma obra de arte, seu peso, não está à mercê de telas de interpretação que coincidiriam ou não com seus contornos. A obra de arte, tal como o mundo, é uma forma viva: ela existe, não tem necessidade de justificativas. A zebra é real, negá-la seria irracional, ainda que suas listras sejam desprovidas de qualquer sentido. O mesmo acontece com uma sinfonia, uma pintura, um romance: é na sua forma que está sua realidade.

Mas -e é aqui que nossos realistas socialistas devem se precaver – é também em sua forma que reside seu sentido, ‘seu significado profundo’, isto é, seu conteúdo. Para um escritor, não existem duas maneiras possíveis de escrever um mesmo livro. Quando pensa num futuro romance, é sempre um estilo que antes de mais nada lhe ocupa a mente e que exige sua mão. Tem na cabeça movimentos de frases, arquiteturas, um vocabulário, construções gramaticais, exatamente como um pintor tem na cabeça linhas e cores. O que acontecerá no livro vem depois, como que segregado pelo próprio estilo. E, uma vez terminada a obra, o que surpreenderá o leitor ainda é essa forma que se pretende desprezar, forma esta cujo sentido frequentemente ele não poderá dizer com exatidão, mas que constituirá para ele o mundo particular do escritor.

Que se faça uma experiência com não importa que obra importante de nossa literatura. Tomemos O Estrangeiro, por exemplo. Basta mudar um pouco os tempos dos versos, substituir esta primeira pessoa do passado composto (cujo emprego bastante desusado se estende pelo conjunto da narrativa) pela comum terceira pessoa do singular do passado perfeito, para que o universo de Camus logo desapareça, e com ele todo o interesse de seu livro; assim como basta mudar a disposição das palavras em Madame Bovary para que não sobre mais nada de Flaubert.

Donde, o mal-estar que sentimos diante dos romances ‘engagés’ que se pretendem revolucionários porque põem em cena a condição operária e os problemas do socialismo. A forma literária que apresentam, que frequentemente data de antes de 1848, fazem deles os mais atrasados dos romances burgueses: sua real significação, perfeitamente sensível à leitura, os valores que deles se extraem são exatamente idênticos aos de nossos séculos XIX capitalista, com seus ideais humanitários, sua moral, sua mistura de racionalismo e de espiritualidade.

Portanto, é bem o estilo, a ècriture, e só ele, que é ‘responsável’, para empregar essa palavra facilmente empregada, a torto e a direito, por aqueles que nos acusam de desempenhar mal nossa missão de escritores. Falar do conteúdo de um romance como de uma coisa independente de sua forma vem a ser riscar o gênero inteiro do setor da arte. Pois a obra de arte não contém nada, no sentido estrito da palavra (isto é, assim como uma caixa pode conter ou não, em seu interior, algum objeto de natureza estranha). A arte não é um envelope de cores mais ou menos brilhantes e que tem por missão ornamentar a ‘mensagem’ do autor, um papel dourado que envolve um pacote de biscoitos, um reboco sobre um muro, um molho que faz o peixe ‘descer’ mais facilmente. A arte não obedece a nenhuma servidão desse gênero, nem aliás a nenhuma outra função pré-estabelecida. Não se apoia em nenhuma verdade que existiria antes dela; e pode-se dizer que não exprime nada além de si mesma. Ela mesma cria seu próprio equilíbrio e seu próprio sentido. Fica de pé sozinha, tal como a zebra; caso contrário, cai.

Compreende-se assim o absurdo desta expressão favorita de nossa crítica tradicional: ‘Fulano tem alguma coisa a dizer e o diz bem’. Não poderíamos adiantar, pelo contrário, que o verdadeiro escritor não tem nada a dizer? Tem apenas uma maneira de dizer. Deve criar um mundo, mas isto a partir de nada, do pó…

Então, é a acusação de ‘gratuidade’ que nos é oposta, sob o pretexto de que afirmamos nossa não dependência. A arte pela arte não tem bom público: isso faz com que se pense em jogo, impostura, diletantismo. Mas a necessidade, que a obra de arte reconhece, nada tem a ver com a utilidade. É uma necessidade absolutamente interna, que evidentemente surge como gratuidade quando o sistema de referência é fixado a partir do exterior: face à revolução, por exemplo, como dissemos, a arte mais elevada pode parecer um empreendimento secundário, irrisório mesmo.

É aqui que reside a dificuldade – estaria tentado a escrever impossibilidade – da criação: a obra deve se impor como necessária, mas necessária para nada; sua arquitetura não tem nenhum emprego, sua força é uma força inútil. Se hoje essas evidências passam por paradoxos, quando se trata do romance, enquanto todos as admitem sem problema para a música, é apenas por causa daquilo que se deve chamar de alienação da literatura no mundo moderno. Esta alienação, que os próprios escritores sofrem na maior parte do tempo sem se darem conta disso, é mantida pela quase totalidade da crítica, a começar pela crítica da extrema esquerda que pretende, em todos os outros setores, lutar contra a condição alienada do home. E vemos que a situação é ainda pior nos países socialistas, onde a libertação dos trabalhadores é, dizem-nos, coisa realizada.

Com toda alienação, esta efetua, bem entendido, uma inversão geral dos valores, bem como a do vocabulário, se bem que se torne muito difícil reagir e que se hesite no emprego das palavras em sua acepção normal. É o que acontece com o termo ‘formalismo’. Tomado no seu sentido pejorativo, só deveria ser aplicado – como ressaltou Nathalie Sarraute – aos romancistas estes que, para se fazerem melhor compreender, afastam-se voluntariamente de toda pesquisa de estilo que corre o risco de desagradar ou surpreender: exatamente aqueles que adotam uma forma – um molde – que já foi provado mas que perdeu toda força, toda vida. São formalistas porque aceitaram uma forma já feita, esclerosada, que não é mais do que uma fórmula, e porque se agarram a essa carcaça descarnada.

O público, por sua vez, facilmente associa a preocupação pela forma com a frieza. Mas isso não é verdade a partir do momento em que a forma se torna invenção e não receita. E a frieza, assim como o formalismo, está inteiramente do lado do respeito pelas regras mortas. Em relação a todos os grandes romancistas dos últimos cem anos, sabemos por seus diários e sua correspondência que a constante preocupação de seu trabalho, aquilo que constituiu suas paixões, sua exigência mais espontânea, toda sua vida, foi justamente essa forma, através da qual suas obras sobreviveram”.

ROBBE-GRILLET, Alain. “Sobre algumas noções obsoletas”. Por um novo romance.

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