Kandinsky sobre músicos, pintores e escritores

Composition VI (Wassily Kandinsky, 1913)

Composition VI (Wassily Kandinsky, 1913)

Maeterlinck

“O grande recurso de Maeterlinck é a palavra […] A palavra é um som interior. Esse som corresponde, pelo menos em parte (e talvez principalmente), ao objeto que a palavra serve para designar. Se não se vê o próprio objeto, se apenas é ouvido o nome, forma-se dele no cérebro do ouvinte uma representação abstrata, o objeto desmaterializado, que não tarda a provocar uma vibração no ‘coração’. Assim é que a árvore da campina, verde, amarela, vermelha, constitui apenas um ‘caso’ matéria, uma forma fortuita, materializada, da árvore que sentimentos em nosso íntimo quando ouvimos pronunciar a palavra árvore.”

“O emprego judicioso de uma palavra (segundo o sentido poético), a repetição interiormente necessária dessa palavra, duas vezes, três vezes, várias vezes seguidas, não amplificam apenas sua ressonância interior: podem ainda revelar outros poderes dessa palavra […] O valor, que se tornou abstrato, do objeto designado desaparece; apenas subsiste o ‘som’ da palavra. Esse ‘som puro’ talvez seja por nós percebido inconscientemente, ao mesmo tempo que o objeto – real ou que acabou se tornando abstrato. Mas então esse som apresenta-se em primeiro plano para exercer uma impressão direta sobre a alma”.

“É por isso, que em Maeterlinck, uma palavra que, à primeira vista, parece neutra, emite um som lúgubre. Outra palavra, simples e de uso corrente (como cabeleira, por exemplo), pode, se bem empregada, dar uma impressão de desespero, de irremediável tristeza.”

Richard Wagner

“Richard Wagner realizou algo semelhante em música. Seu célebre ‘leitmotiv’ tende igualmente a caracterizar um herói, não por meio apenas de acessórios teatrais, de maquilagem ou de efeitos luminosos, mas por um ‘motivo’ preciso, ou seja, por um procedimento puramente musical. Esse motivo é uma espécie de atmosfera espiritual evocada por meios musicais. Precede o herói e, quando este surge, envolve-o numa irradiação invisível.”

Claude Debussy

“Os músicos mais modernos, como Debussy, fornecem impressões que, com frequência, tiram da natureza e transformam em imagens espirituais, sob uma forma puramente musical. Por essa razão, Debussy tem sido aparentado aos pintores impressionistas. Tal como estes, livremente, em grandes traços, ele inspira-se, em suas composições, nas impressões que recebe da natureza.”

“Apesar de suas afinidades com os impressionistas, está tão fortemente voltado para o conteúdo interior que encontramos em suas obras a alma torturada do nosso tempo, vibrante de paixões e de abalos nervosos. Debussy, por outro lado, mesmo em suas imagens impressionistas, jamais se limita à nota captada pelo ouvido, que é a característica da música programática; para além da nota, ele visa a utilização integral do valor interior de sua impressão.”

Modest Mussorgsky e Alexander Scriabin

“A música russa (Mussorgsky) exerceu grande influência sobre Debussy. Portanto, nada tem de surpreendente que nele se descubra certa afinidade com os jovens compositores russos, sobretudo com Scriabin. É evidente o parentesco de timbre interior. Tanto num como no outro, o mesmo defeito indispõe muitas vezes o ouvinte. Quero dizer que lhes acontece serem subitamente arrastados para longe das ‘novas feiúras’ e deixarem-se seduzir pelo charme de uma Beleza mais ou menos convencional. Muitas vezes o ouvinte fica chocado. Tem a impressão de ser projetado – como uma bola de tênis – por cima da rede que separa os dois parceiros: o partido do ‘Belo exterior’ e o do ‘Belo interior’.”

“O ‘Belo interior’ é aquele para o qual nos impele uma necessidade interior quando se renunciou às formas convencionais do Belo. Os profanos chamam-na feiura. O homem é sempre atraído, e hoje mais do que nunca, pelas coisas exteriores, não reconhecendo de bom grado a necessidade de interior. Essa recusa total das formas habituais do ‘Belo’ leva a admitir como sagrados todos os procedimentos que permitem manifestar sua personalidade. O compositor vienense Arnold Schönberg percorre sozinho esse caminho, apenas reconhecido por alguns raros e entusiásticos admiradores.”

Arnold Schönberg

“… Toda construção fugada é possível, mas hoje sinto que pelo menos aqui certas condições me impõem o emprego desta ou daquela dissonância.” (Schönberg)

“Schönberg dá-se claramente conta de que a liberdade sem a qual a arte sufoca nunca é absoluta. Cada época reconhece seu quinhão dela e o gênio mais poderoso não pode ir mais além. Mas essa medida deve esgotar-se por inteiro de cada vez, e o será sempre. A parelha indócil pode escoicear quanto quiser. Também Schönberg se esforça para esgotar essa liberdade, e nesse caminho da ‘necessidade interior’ já descobriu os tesouros da ‘Beleza Nova’. Sua música faz-nos penetrar num reino novo onde as emoções musicais já não são somente auditivas, mas, sobretudo, interiores.”

Dante Gabriel Rossetti, Arnold Böcklin e Giovanni Segantini

“Rosseti voltou-se para os pré-rafaelitas e tentou fazer reviver suas formas abstratas. Böcklin escolheu o domínio da mitologia e da lenda, e, ao contrário de Rossetti, revestiu suas figuras abstratas de formas materiais fortemente acentuadas. Segantini é, aparentemente, o mais material desses artistas. Tomou as formas acabadas da natureza, cadeias de montanhas, pedras, animais, e reproduziu-as em seus ínfimos detalhes. Mas soube, apesar dessa aparência rigorosamente realista, criar imagens abstratas, o que faz dele o menos material dos três, sem dúvida.”

Paul Cézanne

“Cézanne impusera-se a mesma tarefa. Tal como eles, tentou descobrir uma nova lei da forma, mas sem se distanciar tanto quanto os três citados artistas dos meios exclusivos da pintura. De uma xícara de chá, ele fez um ser dotado de alma ou, mais exatamente, distinguiu um ser nessa xícara. Elevou a ‘natureza morta’ ao nível do objeto exteriormente ‘morto’ e interiormente vivo. Tratou os objetos como tratou o homem, pois tinha o dom de descobrir a vida interior em tudo. Captura-os e entrega-os à cor. Recebem dela a vida – uma vida interior – e uma nota essencialmente pictórica. Impõe-lhes uma forma redutível a fórmulas abstratas, frequentemente matemáticas, das quais emana uma radiante harmonia.”

Henri Matisse

“Também ele pinta ‘imagens’, procura reproduzir o ‘divino’. O próprio objeto é para Matisse um ponto de partida (homem ou outra coisa, pouco importa). Ele serve-se exclusivamente dos meios da pintura: a cor e a forma. Seus dons excepcionais, seu talento de coloristas, que ele dava à sua qualidade de francês, levaram-no a conceder em suas obras um papel preponderante à cor. Tal como Debussy, nem sempre soube libertar-se da beleza convencional: tem o impressionismo no sangue […] A beleza refinada, bem francesa, saborosa, puramente melódica da pintura atinge aqui as alturas gélidas, inacessíveis, os cimos gelados do espírito.”

Pablo Picasso

“Constantemente impelido pela necessidade de exprimir-se, arrebatado por sua impulsividade,  Picasso lança-se de um procedimento a outro. Se um abismo os separa, Picasso, de um salto insensato, transpõe-no e logo está do outro lado, para grande susto da legião compacta de seus fiéis imitadores. Eles acreditavam tê-lo alcançado e é preciso recomeçar tudo..”

“Picasso procura, com a ajuda de relações numéricas, atingir o ‘construtivo’. Em suas últimas obras (1911), ele consegue, à força de lógica, destruir os elementos ‘materiais’, não por dissolução mas por uma espécie de fragmentação das partes isoladas e pela dispersão construtiva dessas partes isoladas na tela. Coisa surpreendente, Picasso parece, ao preceder assim, querer conservar, apesar de tudo, a aparência material.”

KANDINSKY, Wassily. Do Espiritual na Arte.

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