Sobre algumas noções obsoletas: O compromisso, por Alain Robbe-Grillet

Construção (Naum Gabo, 1955-1957), Roterdã, Países Baixos

Construção (Naum Gabo, 1955-1957), Roterdã, Países Baixos

“Uma vez que contar para distrair é fútil e que contar para fazer com que creiam naquilo que se conta tornou-se suspeito, o romancista pensa entrever um outro caminho: contar para ensinar. Cansado de ouvir as pessoas assentadas e ‘sérias’ lhe dizerem, com condescendência, que: ‘Eu não leio mais romances, já passei da idade, isso é bom para as mulheres (que não têm nada a fazer), prefiro a realidade…’ e outras asneiras do tipo, o romancista vai se inclinar sobre a literatura didática. Aqui, pelo menos, ele espera reconquistar sua vantagem: a realidade é muito desnorteante, ambígua demais para que cada um de nós possa extrair dela uma lição. Quando se trata de provar alguma coisa (quer seja mostrar a miséria do homem sem Deus, explicar a alma feminina, ou fazer com que surjam consciências de classe), a história inventada deve retomar seus direitos: será tão mais convincente!

Infelizmente, ela não convence mais ninguém; a partir do momento em que o romanesco se torna suspeito, ele corre o risco, pelo contrário, de lançar o descrédito sobre a psicologia, sobre a moral socialista, sobre a religião. Aquele que se interessa por essas disciplinas lerá ensaios, será muito mais seguro. Mais uma vez ainda, a literatura vê-se rejeitada para a categoria do frívolo. O romance de tese, na realidade, tornou-se rapidamente um gênero maldito entre todos… No entanto, vimos como, há alguns anos atrás, ele renascia entre a esquerda com novas roupas: ‘o compromisso’, ‘engagement’; foi o caso também, a Leste e com cores mais ingênuas, do ‘realismo socialista’.

Sem dúvida, a ideia de uma possível conjunção entre uma renovação artística e uma revolução político-econômica é daqueles que vêm o mais naturalmente possível à nossa mente. Esta ideia, desde logo sedutora sob o ponto de vista sentimental, ainda por cima parece encontrar apoio na mais evidente das lógicas. Entretanto, os problemas levantados por semelhante ligação são graves e difíceis, urgentes, mas talvez insolúveis.

De início, a relação parece simples. Por um lado, as formas artísticas que se sucederam na história dos povos nos surgem como ligadas a este ou aquele tipo de sociedade, à preponderância desta ou daquela classe, ao exercício de uma opressão ou à eclosão de uma liberdade. Na França, por exemplo, no setor da literatura, não é gratuito ver uma estreita relação entrea a tragédia de Racine e o desabrochar de uma aristocracia da corte, entre o romance de Balzac e o triunfo da burguesia, etc.

Como, por outro lado, admite-se com boa vontade, mesmo entre os conservadores, que os grandes artistas contemporâneos, escritores ou pintores, na maioria das vezes pertencem (ou pertenceram na época de suas maiores obras) aos partidos progressistas; deixamo-nos levar pela construção do seguinte esquema idilíco: a Arte e a Revolução andam de mãos dadas, lutando pela mesma causa, experimentando as mesmas provações, enfrentando os mesmos perigos, realizando pouco a pouco as mesmas conquistas, alçando-se finalmente à mesma apoteose.

Infelizmente, a partir do momento em que se passa para a prática, as coisas mudam de figura. O menos que se pode dizer, atualmente, é que os dados do problema não são tão simples assim. Todos conhecem as comédias e os dramas que impediram há cinquenta anos, e que impedem ainda, todas as tentativas de realização do maravilhoso casamento que se supunha ser, ao mesmo tempo, por amor e racional. Como poderíamos esquecer as sucessivas submissões e demissões, as disputas retumbantes, as excomunhões, as prisões, os suicídios? Como poderíamos deixar de ver aquilo que a pintura se tornou, para citar apenas ela, nos países onde a revolução triunfou? Como deixar de sorrir diante das acusações de ‘decadência’, de ‘gratuidade’, de ‘formalismo’, aplicadas ao acaso pelos mais zelosos dos revolucionários a tudo aquilo que para nós importa e muito na arte contemporânea? Como deixar de temer de nos encontrarmos um dia, nós mesmos, prisioneiros dos fios da mesma malha?

Digamos antes de mais nada que é muito fácil acusar os maus chefes, a rotina burocrática, a incultura de Stálin, a cretinice do partido comunista francês. Sabemos por experiência própria que também é muito delicado defender a causa da arte junto de não importa que homem político, no seio de não importa qual formação progressista. Confessemo-lo cruamente: a Revolução socialista desconfia da Arte revolucionária e, além do mais, não é evidente que ela esteja errada.

Com efeito, do ponto de vista da revolução, tudo deve concorrer diretamente para o objetivo final: a libertação do proletariado… Tudo, incluindo a literatura, a pintura, etc. Mas para o artista, pelo contrário, e a despeito de suas convicções políticas mais sólidas, a despeito mesmo de sua boa vontade de militante, a arte não pode ser reduzida ao estado de meio a serviço de uma causa que a superaria, ainda que esta fosse a mais justa possível, a mais exaltante; o artista não põe nada acima de seu trabalho, e logo percebe que só pode criar para nada; a menor diretiva exterior o paralisa, a menor preocupação com o didatismo, ou apenas com o significado, representa para ele um incômodo insuportável; seja qual for seu apego ao partido ou às ideias generosas, o momento da criação só pode conduzi-lo aos problemas de sua arte.

Ora, mesmo no momento em que a arte e a sociedade, após expansões comparáveis, parecem atravessar crises paralelas, continua evidente que os problemas que apresentam, uma e outra, não poderiam ser resolvidos da mesma forma. Mais tarde, sem dúvida, os sociólogos descobrirão novas semelhanças nas soluções. Mas para nós, em todo caso, devemos reconhecer honestamente, claramente, que o combate não é o mesmo; e que, hoje como sempre, existe um antagonismo direto entre os dois pontos de vista. Ou a arte não é nada, e neste caso a pintura, a literatura, a escultura, a música poderão ser arroladas para o serviço da causa revolucionária; não serão mais do que instrumentos, comparáveis aos exércitos motorizados, às ferramentas mecanizadas, aos tratores agrícolas; a única coisa que importará será sua eficácia direta e imediata.

Ou então a arte continuará a existir enquanto arte; e neste caso, para o artista pelo menos, continuará a ser a coisa mais importante do mundo. Face à ação política, sempre parecerá então atrasada, inútil, e mesmo francamente reacionária. No entanto, sabemos que, na história dos povos, só a arte, esta arte que se supõe gratuita, encontrará seu lugar, ao lado talvez dos sindicatos operários e das barricadas.

Enquanto isso, esse modo generoso, porém utópico, de falar de um romance, de um quadro ou de uma estátua como se pudessem ter o mesmo peso, na ação cotidiana, de uma greve, de uma revolta, de um grito de uma vítima que denuncia seus carrascos, no final das contas representa um desserviço à Arte e a Revolução. Muitas dessas confusões foram cometidas, nestes últimos anos, em nome do realismo socialista. A total indigência artística das obras que insistem em seus conceitos não é, sem dúvida alguma, mero efeito de um acaso: é a própria noção de uma obra criada para a expressão de um conteúdo social, político, econômico, moral, etc. que se constitui numa mentira.

Portanto, devemos agora, de uma vez por todas, deixar de levar a sério as acusações de gratuidade, deixar de temer ‘a arte pela arte’ como se isso fosse o pior dos males, recusar todo esse aparelho terrorista que era brandido à nossa frente logo que falávamos de outra coisa que não fosse da luta de classes ou da guerra anti-colonialista.

Entretanto, nem tudo era a priori condenável nessa teoria soviética do chamado ‘realismo socialista’. Também na literatura, por exemplo, não se tratava de reagir contra um acúmulo de falsa filosofia que acabara invadindo tudo, da poesia ao romance? Opondo-se às alegorias metafísicas, lutando tanto contra as abstratas ‘redomas de marfim’ que essas alegorias supunham quanto contra o delírio verbal sem objetivo ou contra o vago sentimentalismo das paixões, o realismo socialista podia ter uma sadia influência.

Aqui não tem mais lugar as ideologias enganosas e os mitos. A literatura simplesmente expõe a situação do homem e do universo com que está às voltas. Ao mesmo tempo em que desapareceram os ‘valores’ terrestres da sociedade burguesa, desapareceram também os recursos mágicos, religiosos ou filosóficos a todo e qualquer ‘além’ espiritual de nosso mundo visível. Os temas do desespero e do absurdo, que tinham entrado em moda, são denunciados como álibis fáceis demais. Assim é que Ilya Ehrenburg não hesitava escrever, logo após a guerra: ‘A angústia é um vício burguês. Quanto a nós, reconstruímos’.

Tinha-se o direito de esperar, diante de tais princípios, que o homem e as coisas iriam se ver limpos de seu sistemático romantismo, para empregar este termo caro a Lukacs, e que finalmente poderiam ser apenas aquilo que são. A realidade não mais estaria incessantemente situada noutro lugar, mas aqui e agora, sem nenhuma ambiguidade. O mundo não encontraria mais sua justificação num sentido oculto, fosse qual fosse, sua existência residiria apenas na sua presença concreta, sólida, material; para além daquilo que vemos (daquilo que percebemos com nossos sentidos) doravante não haveria mais nada.

Observemos agora o resultado disso tudo. Que nos oferece o realismo socialista? Evidentemente, desta vez, os bons são os bons e os maus são os maus. Mas, exatamente, a insistência de que isto é óbvio não tem nada a ver com aquilo que observamos no mundo. Que progresso há nisso, se para escapar ao desdobramento das aparências e das essências caímos num maniqueísmo entre o bem e o mal?

Há algo mais grave ainda. Quando, nas narrativas menos ingênuas, encontramo-nos diante de homens verossímeis, num mundo complexo e dotado de uma existência sensível, logo nos apercebemos, apesar de tudo, de que este mundo e estes homens foram construídos face a uma determinada interpretação. Aliás, seus autores não escondem esse fato: para eles, trata-se, antes de tudo, de ilustrar, com a maior exatidão possível, comportamentos históricos, econômicos, sociais, políticos.

Ora, do ponto de vista da literatura, as verdades econômicas, as teorias marxistas sobre a mais-valia e a usurpação também são ‘redomas de marfim’. Se os romances progressistas só devem ter uma realidade relacionada a essas explicações funcionais do mundo visível, antecipadamente preparadas, experimentadas, reconhecidas, não conseguimos perceber direito qual poderia ser o poder de descoberta ou de invenção que teriam; e, sobretudo, isso seria mais uma vez uma nova maneira de recusar ao mundo sua qualidade mais certa: o simples fato de que ele existe. Uma explicação, seja qual for, só pode ser demais frente à presença das coisas. Uma teoria de sua função social, se essa teoria presidiu a descrição dessas coisas só pode confundir seus perfis, falsificá-las, da mesma forma que as antigas teorias psicológicas e morais, ou como o simbolismo das alegorias.

Fato que explica, no fim das contas, que o realismo socialista não tem necessidade de nenhuma pesquisa para a forma do romance, que ele desconfia no mais alto grau de qualquer novidade técnica das artes, que aquilo que mais lhe convém, como vemos todo dia, é a expressão mais ‘burgues’ possível.

Mas, há já algum tempo, o mal estar faz-se sentir na Rússia e nas Repúblicas populares. Os responsáveis pela situação começam a compreender que tomaram o caminho errado, e que, a despeito das aparências, as pesquisas ditas ‘de laboratório’ sobre a estrutura e a linguagem do romance, ainda que no começo só interessem a especialistas, naõ são talvez tão inúteis quanto o partido da revolução pretende fazer crer.

Que sobra então do engagement? Sartre, que viu o perigo dessa literatura moralizadora, tinha pregado em favor de uma literatura moral, que pretendia apenas despertar consciências políticas ao apresentar os problemas de nossa sociedade, mas que escaparia ao espírito da propaganda ao restabelecer o leitor em sua plena liberdade. A experiência mostrou que se tratava, ainda aqui, de uma utopia: a partir do instante em que surge a preocupação de significar alguma coisa (algo de exterior à arte), a literatura começa a recuar, a desaparecer.

Portanto, atribuamos à noção de compromisso o único sentido que ela pode ter para nós. Em lugar de ser natureza política, o compromisso é, para o escritor, a plena consciência dos problemas atuais de sua própria linguagem, a convicção da extrema importância desses problemas, a vontade de resolvê-los a partir do lado interno. Reside aí, para ele, a única possibilidade de continuar a ser um artista e também, sem dúvida, por uma consequência obscura e distante, a de talvez servir um dia a alguma coisa – talvez mesmo à Revolução”.

ROBBE-GRILLET, Alain. “Sobre algumas noções obsoletas”. Por um novo romance.

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