A Encenação e a Metafísica de Artaud na obra de Lucas van Leyden

As Filhas de Lot (Lucas van Leyden, 1521)

As Filhas de Lot (Lucas van Leyden, 1521)

“No Louvre há uma pintura de um primitivo, conhecido ou desconhecido, não sei, mas cujo nome nunca será representativo de um período importante da história da arte. Esse primitivo chama-se Lucas van den Leyden e a meu ver ele torna inúteis e abortados os quatrocentos ou quinhentos anos de pintura que vieram depois dele. A tela de que estou falando intitula-se As filhas de Loth, tema bíblica em moda na época. Claro que, na Idade Média, a Bíblia não era entendida como a entendemos hoje, e este quadro é um exemplo estranho das deduções místicas que podem ser extraídas dela. Em todo caso, seu patético é visível mesmo de longe, impressiona o espírito com uma espécie de harmonia visual fulminante, ou seja, cuja acuidade age inteira e é apanhada num único olhar. Mesmo antes de poder ver do que se trata, sente-se que ali está acontecendo algo grandioso, e os ouvidos, por assim dizer, emocionam-se ao mesmo tempo que os olhos. Um drama de alta importância intelectual, ao que parece, é captado como uma brusca reunião de nuvens que o vento, ou uma fatalidade muito mais direta, tivesse levado a colocar seus relâmpagos em confronto.

Com efeito, o céu do quadro é escuro e carregado, mas mesmo antes de conseguir distinguir que o drama nasceu no céu, se passa no céu, a particular iluminação da tela, o emaranhado das formas, a impressão que se tem de longe, tudo isso anuncia uma espécie de drama da natureza, cujo equivalente eu desafio qualquer pintor dos Períodos Áureos da pintura a nos propor.

Uma tende ergue-se à beira-mar, diante da qual Loth, sentado com sua couraça e uma barba do mais lindo vermelho, observa a evolução de suas filhas, como se assistisse a um festim de prostitutas.

E, de fato, elas se exibem, umas como mães de família, outras como guerreiras, penteiam os cabelos e se paramentam, como se nunca tivessem tido outro objetivo além de agradar ao pai, servir-lhe de brinquedo ou instrumento. Surge assim o caráter profundamente incestuoso do velho tema que o pintor desenvolve aqui em imagens apaixonadas. Prova de que ele compreendeu perfeitamente como um homem moderno, ou seja, assim como nós poderíamos compreendê-la a profunda sexualidade do tema. Prova de que seu caráter de sensualidade profunda mas poética não lhe escapou, como não nos escapa.

À esquerda da tela, e um pouco em segundo plano, eleva-se a alturas prodigiosas uma torre preta, apoiada na base por todo um sistema de rochedos, plantas, caminhos sinuosos delimitados por marcos, pontilhados por casas aqui e ali. E, por um feliz efeito de perspectiva, um desses caminhos de repente se destaca do emaranhado através do qual  se infiltrava, atravessa uma ponte, para finalmente receber um raio dessa luz de tempestade que transborda das nuvens, aspergindo toda a região de modo irregular. O mar ao fundo da tela é extremamente alto e, além disso, extremamente calmo, considerando-se o emaranhado de fogo que ervilha num canto do céu.

De repente, no crepitar de fogos de artifício, através do bombardeio noturno das estrelas, dos raios, das bombas solares, vemos de repente revelar-se a nossos olhos, numa luz de alucinação, em relevo sobre a noite, alguns detalhes da paisagem: árvores, torre, montanhas, casas, cuja iluminação e cuja aparição permanecerão para sempre ligadas em nosso espírito à ideia desse dilaceramento sonoro; não é possível exprimir melhor esta submissão dos diversos aspectos da paisagem ao fogo manifestado no céu do que dizendo que, embora tenham luz própria, permanecem relacionados ao fogo como espécies de ecos amortecidos, como pontos de referência vivos, nascidos do fogo e ali colocados para permitir que ele exerça toda a sua força de destruição.

Existe aliás no modo pelo qual o pintor descreve esse fogo alguma coisa de terrivelmente enérgico e perturbador; como um elemento ainda em ação e móvel numa expressão imobilizada. Pouco importa o meio pelo qual esse efeito é alcançado, ele é real; basta ver o quadro para convencer-se disso.

Seja como for, esse fogo, que emana uma impressão de inteligência e de maldade que ninguém poderia negar, serve, por sua própria violência, de contrapeso no espírito para a estabilidade material e densa do resto.

Entre o mar e o céu, mas à direita e no mesmo plano em perspectiva da Torre Negra, avança uma delgada língua de terra coroada por um mosteiro em ruínas.

Essa língua de terra, por mais próxima que pareça da margem em que se ergue a tenda de Loth, abre espaço para um golfo imenso no qual parece ter havido um desastre marítimo sem precedentes. Barcos cortados ao meio e que não chegam a afundar apoiam-se no mar como em muletas, enquanto ao lado flutuam seus mastros arrancados e suas vergas.

Seria difícil dizer por que é tão total a impressão de desastre que provém da observação de apenas um ou dois navios despedaçados.

Parece que o pintor conhecia alguns segredos relativos à harmonia linear e os meios de fazê-la atuar diretamente sobre o cérebro, como um reagente físico. Em todo caso, essa impressão de inteligência espalhada pela natureza exterior, e sobretudo no modo de representá-la, é visível em vários outros detalhes do quadro, como testemunha a ponte da altura de uma casa de oito andares que se ergue sobre o mar e onde personagens em fila desfilam como as ideias na caverna de Platão.

Pretender que são claras as ideias que se depreendem desse quadro seria falso. Em todo caso, são de uma grandeza da qual a pintura que só sabe pintura, ou seja, toda a pintura de vários séculos, nos desacostumou completamente.

Acessoriamente, ao lado de Loth e de suas filhas, há uma ideia sobre a sexualidade e a reprodução, com Loth que parece ter sido colocado ali para aproveitar-se abusivamente de suas filhas, como um zangão.

É quase a única ideia social que a pintura contém.

Todas as outras são ideias metafísicas. Lamento pronunciar essa palavra, mas é o nome delas; e eu diria até que sua grandeza poética, sua eficácia concreta sobre nós, provém do fato de serem metafísicas, e que sua profundidade espiritual é inseparável da harmonia formal e exterior do quadro.

Há ainda uma ideia sobre o Devir que os diversos detalhes da paisagem e o modo pelo qual foram pintados, pelo qual seus planos se aniquilam ou se correspondem, introduzem-nos no espírito tal como a música o faria.

Há uma outra ideia sobre a Fatalidade, expressa menos pelo aparecimento desse fogo brusco do que pelo modo solene como todas as formas se organiza ou desorganizam abaixo dele, umas como que curvadas pelo vento de um pânico irresistível, outras imoveis e quase irônicas, todas obedecendo a uma harmonia intelectual poderosa, que parece o próprio espírito da natureza, exteriorizado.

Há também uma ideia sobre o Caos, outra sobre o Maravilhoso, sobre o Equilíbrio; há até uma ou duas sobre as impotências da Palavra, cuja inutilidade essa pintura extremamente material e anárquica parece nos demonstrar.”

ARTAUD, Antonin. A Encenação e a Metafísica. O Teatro e seu Duplo.

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