John Cage e a nova música

Ryoanji (John Cage, 1988)

Ryoanji (John Cage, 1988)

“Max Ernst, por volta de 1950, falando no Clube das Artes, na Rua 8, Nova York, disse que alterações significativas nas artes ocorriam, antes, a cada trezentos anos, enquanto que agora ocorrem a cada vinte minutos.

Tais mudanças acontecem primeiramente nas artes que, como plantas, estão fixas em pontos particulares no espaço: arquitetura, pintura e escultura. Elas acontecem depois nas artes de espetáculo, música e teatro, que requerem, como os animais, passagem de tempo para sua realização.

Em literatura, como se dá com os mixomicetos e os organismos similares, que são classificados ora como plantas ora como animais, as mudanças ocorrem tanto cedo quanto tarde. Esta arte, se compreendida como material impresso, tem a característica de objetos no espaço; mas, entendida como espetáculo, assume o aspecto de processos no tempo.

Eu aceitei por muitos anos, e ainda aceito, a doutrina sobre Arte ocidental e oriental desenvolvida por Ananda K. Coomaraswamy no livro A Transformação da Natureza na Arte, segundo a qual função da arte é imitar a natureza no seu modo de operação. Nosso entendimento de ‘seu modo de operação’ muda de acordo com os avanços nas ciências. Esses avanços, no nosso século, introduziram o termo ‘espaço-tempo’ no nosso vocabulário. Em vista disso, as distinções feitas acima entre artes do espaço e do tempo são presentemente uma hipersimplificação.

Observem que a apreciação de uma pintura moderna conduz a atenção da gente não para um centro de interesse, mas para toda a tela e sem seguir nenhum caminho particular. Qualquer ponto da tela pode ser tomado como início, continuação ou fim da observação da gente. Esse é o caso, também, de obras simétricas, já que aí a atenção do observador se faz móvel pela rapidez com que ele supera o problema de entender a estrutura. Pode-se determinar se uma pintura ou escultura tem ou não um centro de interesse observando se ela é destruída pelos efeitos das sombras. (Intromissões do ambiente são efeitos de tempo. Mas elas são bem-vindas no caso de uma pintura que não se preocupa em focalizar a atenção do observador). Observem também os trabalhos de pintura, escultura e arquitetura que, empregando materiais transparentes, se tornam inseparáveis de seu ambiente instável.

O atraso da música em relação às artes mencionadas é a sorte dela. Ela é capaz de tirar deduções das experiências das outras e combiná-las com experiências necessariamente diferentes que surgem de sua natureza especial. Primeiro de tudo, então, um compositor, neste momento, libera sua música de um único clímax dominante. Procurando uma interpenetração e uma não-obstrução de sons, ele renuncia à harmonia e seus efeitos de fundir os sons num relacionamento fixo. Desprezando a noção de hauptstimme, seus ‘contrapontos’ são sobreposições, eventos que se relacionam uns com os outros só porque ocorrem ao mesmo tempo. Se ele mantém em seu trabalho aspectos de estrutura, eles são simétricos em caráter, canônicos, ou apresentando igual importância de partes, seja as que estão presentes ao mesmo tempo, seja as que se sucedem. Sua música não é interrompida pelos sons do ambiente, o que ele confirma incluindo silêncios em seu trabalho ou dando à sua continuidade a própria natureza do silêncio (ausência de intenção).

Além disso, os músicos, já que eles são vários em lugar de um só, como um pintor ou escultor, são atualmente capazes de serem independentes um do outro. Um compositor escreve, neste momento, indeterminadamente. Os executantes já não são escravos, mas homens livres. Um compositor escreve partes mas, para não fixas suas relações, não escreve partitura. As fontes sonoras são uma multiplicidade de pontos no espaço em relação à audiência, de forma que cada ouvinte tem sua própria experiência. Os ‘móbiles’ da escultura moderna são algo parecido, mas as partes que eles têm não são tão livres como as de uma composição musical, já que possuem meios de suspensão comuns e seguem a lei da gravidade. Em arquitetura, onde o trabalho também é dividido, como na música, ainda não se pode observar a mesma liberdade que nesta. A pino sobre a terra, um edifício bem construído não cai. Talvez, não obstante, quando os sonhos de Buckminster Fuller se tornarem realidades (casas, por exemplo, que sejam lançadas do ar, em lugar de bombas), a arquitetura inicie uma série totalmente nova de mudanças nas artes, através de meios flexíveis ainda desconhecidos.

As mudanças na música precedem mudanças equivalentes no teatro, e as do teatro precedem mudanças gerais nas vidas das pessoas. O teatro é consumido, eventualmente, porque se assemelha à vida mais de perto que qualquer arte, requerendo, para sua apreciação, o uso simultâneo de olhos e ouvidos, espaço e tempo. ‘Um ouvido sozinho não é um ser’. Por isso, encontramos sempre mais obras de arte, visuais ou audíveis, que já não são estritamente nem música nem pintura. Em Nova York são chamadas ‘happenings’. Assim como as sombras já não destroem a pintura, nem os sons ambientais a música, as atividades ambientais não destroem um happening. Ao contrário, podem causar mais prazer. O resultado, para citar um exemplo da vida diária, é que nossas vidas não são perturbadas pelas interrupções promovidas continuamente pelas pessoas e coisas.

Tentei aqui apresentar brevemente uma visão das artes que não as separa do resto da vida, mas em vez disso confunde a diferença entre Arte e Vida, assim como minimiza as distinções entre espaço e tempo. Muitas das ideias envolvidas vêm do Oriente, particularmente da China e do Japão. Entretanto, com a imprensa escrita, o avião, a telegrafia, e hoje em dia com o Telstar, as distinções entre Ocidente e Oriente estão desaparecendo rapidamente. Vivemos num único mundo. Da mesma forma, as distinções entre o eu e  outro estão sendo esquecidas. Em toda parte do mundo as pessoas cooperam para executar uma ação. Ouvindo falar de anonimato, a gente pode imaginar a ausência de competição.

Alguém pode dizer quantos artistas nascerão nos próximos vinte minutos? Estamos atentos às grandes mudanças que estão ocorrendo a cada instante em grande número de pessoas neste planeta. Sabemos também das mudanças igualmente grandes na praticidade – isto é, o que através da tecnologia, as pessoas estão capacitadas a fazer. Grande número de homens vai decidir sobre as futuras obras de arte. E elas tomarão mais direções do que as que a história registra. Nós não temos mais de nos embalar na expectativa do advento de algum único artista que venha satisfazer nossas necessidades estéticas. Haverá em vez disso uma incrementação no volume e nas espécies de arte, que serão ao mesmo tempo capazes de provocar perplexidade a alegria.”

CAGE, John. De Segunda a um Ano.

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